kitschnet - mini-pratos ao balcão: excrever


22.2.07

excrever

Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.
Vergílio Ferreira, in "Pensar"


Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.
Vergílio Ferreira, in 'Pensar'



Não ter já nada para dizer e continuar a escrever é um crime, porque não tem o direito de continuar a escrever se não tem nada para dizer.
José Saramago



Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido
Jules
Renard



despoleta-se já aqui o verbo pelos ditos acima e pelos aqui ditos e dá-se voz à vontade de resmungar sem cerimónia que vamolá escrever, partir o bico do lápes e a cachimónia. que não há direito de proibir à gente seja o que for e já bem basta o auto imposto de sê-lo. faz-se lixo e abatem-se árvores e pelo meio correm rios de treva e treta. mas também corre o atleta de fundo, nas mesmas pistas a deixar diferentes rastos. agora não se manda é calar ninguém, nem o paulo coelho. ou o 25 de fez-se para quê. a essa musa calada eu pontapeio e dou estalada, que aqui e além as vozes devem ouvir-se e não se cale ninguém. para o melhor e pior, todos comem com as mãos com que escrevem e escrever é saír, pensar, cirandar, cindir. até que a morte nos separe da seara alheia. alarga o tempo e o passamento, abranda o lento e salva o pé de salsa do esquecimento. que escrever é esta coisa de respirar. para quem pode, deve. para quem tem a sorte de saber, de prever e adivinhar que não deixe definhar a letra com falta de veia e coragem, que abraçe a corrida contratempo e dele se desembarace. que não se dê o rito por não dito, que floresça o benigno e o maldito para se aprender a ver, escrever e contar com quantos dentes se tem. é fixar e fugir, contaminar e infringir. proibir pode ser tentação, escorraçar o meio-irmão, o coxo bastardo mas limitar é diminuir, atentado, roubo silenciado. vergílio é herói, saramago um coitadinho. renard disse-a toda para mim. que falo da minha pessoa, sim. do que sei melhor e nada sei, do que disse e arquivei. é sem ser interrompido, a plenitude do escrevido. o falar metralhado na folha branda linda e lisa, fazer dela a camisa alva e alta de entre campos, para florir e florear, para riscar e rasgar. para a vingança e a promessa, o que devolve e arremessa. a liberdade na ponta da caneta, em frente ao espelho a careta. o transe lácteo das linhas tortas do caderno hodierno, há herança sempre, nem que seja prato rachado ou um pano manchado. tem de se ficar para a história, para lhe ver o final, para lhe fazer sinal. não se prive ninguém do seu papel se sente vontade de dar a parte. que arrogância reaccionária de quem tem medo de que o tapete lhe fuja dos pés. ter medo é bom mas atiçar o cão é perder a mão, dizer adeus ao que podia e devia. é negligência e falta de fé, romaria sem se ir a pé. confesso que o faço para que ninguém me cale, porque me arrogo no direito de soltar o que vai no peito e não o faço em suficiência. que adio o baralho das cartas e das trocas, que o meu fundo vai longo e escruo mas ai de quem me amordaçar, morderei até sangrar. e isto vale para todos os ditadores meia tigela vazia. espernearei e cuspirei fogo e farpas. cada um escolhe o seu mas ninguém manda no meu. que nada se perca, que ninguém se venda à ideia cega de que não é que chegue, que se peça mais e que se pense e se aprenda a viver. que se aprenda.

posted by pimpinelle