kitschnet - mini-pratos ao balcão: Diário de bairro IV


5.12.13

Diário de bairro IV


A minha mesa preferida – a única individual – do café onde costumo almoçar uma sopa e uma sanduíche de filete (85% das vezes) ou panado (as vezes restantes) quando não estou para preparar nada fica junto à janela, de frente para a parede, e hoje estava livre. Apesar de ter os diversos flancos resguardados, tenho vista directa para o hall de entrada do estabelecimento, o que não é nem deixa de ser uma vantagem porque almoço com os olhos postos no livro. Apesar de tudo, oiço-os a todos. A empregada, ruça de ar russo mas portuguesa como poucas, tem a voz e a personalidade da apresentadora das manhãs da TVI. Cumprimenta efusivamente todos os que entram, incluindo-me. 
Já sentada e ruminante, entra um aposentado de fato, o típico sénior de bairro que ainda se apruma para sair de casa porque não imagina sequer outra possibilidade. Entra no café como quem entra em palco, de braços abertos, vejo-o pelo canto do olho, sendo recebido em apoteose pela funcionária enérgica, que lhe guincha, prazenteira, onde tem andado, senhor qualquer coisa? Não tenho saído, responde o aposentado. Do frio, penso eu, reconcentrando os sentidos no parágrafo que começo a ler pela terceira vez. Só tiro os olhos da página quando oiço «aaai… aaai… aaai… aaai…» vindos da rua, que não vejo. As pessoas acodem e percebo que é o velho, a única personagem em falta nesta cena. Não sei o que faz na rua, se tinha acabado de entrar, mas o gemido vem lá de fora. Penso em ir também, mas já todos foram, homens feitos inclusive, e não estou preparada para ver uma morte ao vivo. A moça ruça vem no sentido contrário dos outros e vai buscar guardanapos atrás do balcão. Vozes maternais de mulheres dão ordens ao senhor: sente-se, devagarinho, não se mexa, não, deixe-se estar, e depois para dentro: mais guardanapos, chame o 112. Agora o senhor parou de gemer, mas as mulheres continuam a dar-lhe ordens despachadas, o que me leva a deduzir que não é grave, embora não veja nada do que se passa lá fora por causa da parede. Alguns voltam para dentro. Por instantes, fui a única pessoa sentada (a cozinheira, nos fundos, está provavelmente de pé e não conta, porque não se apercebeu de nada), o que me causa vergonha, embora saiba que ir até lá de nada serviria. Sempre me fizeram impressão estas situações em que todos acorrem, seja uma luta de recreio ou uma queda valente. As multidões alvoroçadas são-me insuportáveis. Além disso, já salvo o dia muitas vezes noutros contextos, pelo que bem posso deixar o papel de herói para outrém de vez em quando. Mesmo assim, sinto vergonha de uma sensatez que tem o seu quê de cobardia; além disso, quando um dia for velha e cair, quero tudo à minha volta, incluindo a cozinheira.
Percebo pelo «um, dois, três» em coro que estão a içar o ancião. Alguém entra no café, afasta uma cadeira de uma das mesas e põe-na à entrada, voltada para mim. Olho agora para a cadeira vazia, a cinco metros de distância, prestes a receber o sinistrado. Verei sangue e desamparo e com o homem a olhar para mim ser-me-á impossível continuar a comer. Lá trazem o senhor, escoriado, uns pedaços da cara avermelhados, na testa e no nariz. Aperta um guardanapo contra a cabeça, mas não estanca hemorragia alguma porque não existe hemorragia alguma, está só esfolado. Foi sobretudo susto, felizmente. E, felizmente, pessoas corpulentas postam-se diante do ferido, o que me permite acabar a sopa, que como mais envergonhada do que nunca. Ele está óptimo, mas fazem-lhe perguntas muito alto, como se estivesse surdo ou desmaiado: agora tem de ir ao hospital, tem quem o leve? Tem alguém em casa? Ah, é viúvo? Tem alguém a quem ligar? Ele balbucia qualquer coisa. Algo me diz que quer apenas descansar um bocado (ou prolongar o momento). Os paramédicos improvisados retornam às suas mesas, agora que a situação está controlada, mergulhando nos seus bacalhaus à seja o que for e deixando uma senhora que anda de um lado para o outro enquanto espera que lhe atendam o telefonema encarregada do caso. Levanto-me para ir pagar e sair dali depressa. Quando me vou a aproximar do balcão, a loira cujo loiro é dos balcãs intercepta-me e olha para mim com a expressão preocupada que ostenta há cinco minutos, desde que tudo começou. Os olhos arregalados pincelados com rímel quebram-me e cedo à pressão social de lhe perguntar se o senhor está bem, embora saiba perfeitamente que está, porque o vejo mesmo ali, agora ainda mais de perto. Pestaneja e faz que sim, encolhendo os ombros. Diz uma banalidade qualquer do género «é a idade» e eu retruco com a minha pan-resposta: «pois, é complicado.» Agora ancorada à vitrine, de nota em riste para pagar, já quase fora de perigo, ninguém para me atender. Estou à mercê de uma senhora que parece francesa mas não é, que fala com quem não quer ouvir, que já tenho visto por ali mais vezes. Come qualquer coisa que não me dou ao trabalho de identificar. Sem o menor pudor, olha-me directamente e começa a falar: agora tenho de o levar ao hospital. Sinto-me melhor por o senhor afinal estar acompanhado, mas estranho que ela esteja a almoçar calmamente enquanto o seu ente-supostamente-querido encosta um guardanapo à testa. O meu marido (ah, penso eu) caiu ontem (outra vez? penso eu), mas não quis ir, agora cai este senhor (ah, penso eu). Os homens são muito teimosos, conclui. Pelo incrível à-vontade com que discursa percebo que posso ficar sua refém várias horas se ninguém vier em meu auxílio. E a caixa, com o meu troco lá dentro, ali tão perto. Para que é que eu me casei, indaga o ar com pronúncia nortenha e amargura idosa, eu nem me queria casar. Pergunto-me o que sentirá o marido. Por fim, o outro funcionário, cujo paradeiro durante todo este tempo se desconhece, chega e pega na minha nota. Recolho o troco e, quando me volto, deparo uma vez mais com o Ícaro septuagenário. Expressão simpática, segura o guardanapo com uma delicadeza em desuso, ostenta dois pins na lapela (não são do colégio militar, mas de outras corporações quaisquer) e as pernas cruzadas deixam à vista as meias brancas, de desporto, calçadas do avesso. Saio para a luz e constato que esta história é inteiramente desprovida de moral.

posted by pimpinelle