Diário de bairro IV
A minha mesa preferida – a única individual – do café onde
costumo almoçar uma sopa e uma sanduíche de filete (85% das vezes) ou panado
(as vezes restantes) quando não estou para preparar nada fica junto à janela, de
frente para a parede, e hoje estava livre. Apesar de ter os diversos flancos resguardados,
tenho vista directa para o hall de
entrada do estabelecimento, o que não é nem deixa de ser uma vantagem porque
almoço com os olhos postos no livro. Apesar de tudo, oiço-os a todos. A empregada,
ruça de ar russo mas portuguesa como poucas, tem a voz e a personalidade da apresentadora
das manhãs da TVI. Cumprimenta efusivamente todos os que entram, incluindo-me.
Já
sentada e ruminante, entra um aposentado de fato, o típico sénior de bairro que
ainda se apruma para sair de casa porque não imagina sequer outra possibilidade. Entra
no café como quem entra em palco, de braços abertos, vejo-o pelo canto do olho,
sendo recebido em apoteose pela funcionária enérgica, que lhe guincha,
prazenteira, onde tem andado, senhor qualquer coisa? Não tenho saído,
responde o aposentado. Do frio, penso eu, reconcentrando os sentidos
no parágrafo que começo a ler pela terceira vez. Só tiro os olhos da página
quando oiço «aaai… aaai… aaai… aaai…» vindos da rua, que não vejo. As pessoas acodem
e percebo que é o velho, a única personagem em falta nesta cena. Não sei o que
faz na rua, se tinha acabado de entrar, mas o gemido vem lá de fora. Penso em
ir também, mas já todos foram, homens feitos inclusive, e não estou preparada
para ver uma morte ao vivo. A moça ruça vem no sentido contrário dos outros e
vai buscar guardanapos atrás do balcão. Vozes maternais de mulheres dão ordens
ao senhor: sente-se, devagarinho, não se mexa, não, deixe-se estar, e depois
para dentro: mais guardanapos, chame o 112. Agora o senhor parou de gemer, mas as mulheres continuam a
dar-lhe ordens despachadas, o que me leva a deduzir que não é grave, embora
não veja nada do que se passa lá fora por causa da parede. Alguns
voltam para dentro. Por instantes, fui a única pessoa sentada (a
cozinheira, nos fundos, está provavelmente de pé e não conta, porque não se
apercebeu de nada), o que me causa vergonha, embora saiba que ir até lá de nada
serviria. Sempre me fizeram impressão estas situações em que todos acorrem,
seja uma luta de recreio ou uma queda valente. As multidões alvoroçadas são-me insuportáveis. Além
disso, já salvo o dia muitas vezes noutros contextos, pelo que bem posso deixar
o papel de herói para outrém de vez em quando. Mesmo assim, sinto vergonha de
uma sensatez que tem o seu quê de cobardia; além disso, quando um dia for velha e
cair, quero tudo à minha volta, incluindo a cozinheira.
Percebo pelo «um, dois, três» em coro que estão a içar o
ancião. Alguém entra no café, afasta uma cadeira de uma das mesas e põe-na à entrada,
voltada para mim. Olho agora para a cadeira vazia, a cinco metros de distância, prestes a receber o sinistrado. Verei sangue e desamparo e com o homem a olhar para mim ser-me-á
impossível continuar a comer. Lá trazem o senhor, escoriado, uns
pedaços da cara avermelhados, na testa e no nariz. Aperta um guardanapo contra
a cabeça, mas não estanca hemorragia alguma porque não existe hemorragia alguma,
está só esfolado. Foi sobretudo susto, felizmente. E, felizmente, pessoas
corpulentas postam-se diante do ferido, o que me permite acabar a sopa,
que como mais envergonhada do que nunca. Ele está óptimo, mas fazem-lhe
perguntas muito alto, como se estivesse surdo ou desmaiado: agora tem de ir ao hospital,
tem quem o leve? Tem alguém em casa? Ah, é viúvo? Tem alguém a quem ligar? Ele
balbucia qualquer coisa. Algo me diz que quer apenas descansar um bocado
(ou prolongar o momento). Os paramédicos improvisados retornam às suas mesas,
agora que a situação está controlada, mergulhando nos seus bacalhaus à seja o
que for e deixando uma senhora que anda de um lado para o outro enquanto espera
que lhe atendam o telefonema encarregada do caso. Levanto-me para ir pagar e
sair dali depressa. Quando me vou a aproximar do balcão, a loira cujo loiro é
dos balcãs intercepta-me e olha para mim com a expressão preocupada que ostenta
há cinco minutos, desde que tudo começou. Os olhos arregalados pincelados com
rímel quebram-me e cedo à pressão social de lhe perguntar se o senhor está bem,
embora saiba perfeitamente que está, porque o vejo mesmo ali, agora ainda mais de perto. Pestaneja
e faz que sim, encolhendo os ombros. Diz uma banalidade qualquer do género «é a
idade» e eu retruco com a minha pan-resposta: «pois, é complicado.» Agora
ancorada à vitrine, de nota em riste para pagar, já quase fora de perigo,
ninguém para me atender. Estou à mercê de uma senhora que parece francesa mas não é,
que fala com quem não quer ouvir, que já tenho visto por ali mais
vezes. Come qualquer coisa que não me dou ao trabalho de identificar. Sem o menor
pudor, olha-me directamente e começa a falar: agora tenho de o levar ao
hospital. Sinto-me melhor por o senhor afinal estar acompanhado, mas estranho
que ela esteja a almoçar calmamente enquanto o seu ente-supostamente-querido encosta
um guardanapo à testa. O meu marido (ah, penso eu) caiu ontem (outra vez? penso
eu), mas não quis ir, agora cai este senhor (ah, penso eu). Os homens são muito
teimosos, conclui. Pelo incrível à-vontade com que discursa percebo que posso ficar sua
refém várias horas se ninguém vier em meu auxílio. E a caixa, com o meu troco lá
dentro, ali tão perto. Para que é que eu me casei, indaga o ar com pronúncia nortenha e
amargura idosa, eu nem me queria casar. Pergunto-me o que sentirá o marido. Por
fim, o outro funcionário, cujo paradeiro durante todo este tempo se desconhece,
chega e pega na minha nota. Recolho o troco e, quando me volto, deparo uma vez
mais com o Ícaro septuagenário. Expressão simpática, segura o guardanapo com
uma delicadeza em desuso, ostenta dois pins
na lapela (não são do colégio militar, mas de outras corporações quaisquer) e
as pernas cruzadas deixam à vista as meias brancas, de desporto, calçadas do
avesso. Saio para a luz e constato que esta história é inteiramente desprovida de moral.