kitschnet - mini-pratos ao balcão: Notas da biblioteca II


2.5.18

Notas da biblioteca II

A caminho da biblioteca, apressada, mastigo um pastel de nata. Cruzo-me com um cidadão que fuma à porta do seu local de trabalho e fala ao telefone. No segundo em que passo à sua frente, ele diz a alguém do outro lado da linha, a propósito da conversa de ambos: «um pastelinho de nata». Já na biblioteca, traduzo alguns parágrafos sobre bandeiras nacionais e locais. Quando levanto os olhos, mesmo à minha frente, do outro lado do vidro, seis estandartes agitam os seus panos: Portugal, União Europeia, Lisboa e mais três. Minutos depois, no preciso momento em que um antigo professor universitário faz like numa fotografia que partilho, os meus olhos recaem sobre a lombada do livro que ajudei a organizar com ele.

Pela terceira vez consecutiva, tenho à minha frente estudantes de medicina debruçados sobre diagramas do cérebro (o corpo caloso tem curvas muito apelativas). Por mais maçãs que coma (esta biblioteca é permissiva), não há meio de afugentar os médicos.

A caminho da casa-de-banho, passo por uma estante que exibe um livro intitulado «Matemática Concreta». Lembro-me logo da minha professora de Filosofia do secundário, que dizia: «Se a matemática é tão concreta assim, porque é que nunca vemos um dois e um quatro a passear de braço dado?»


A moça ao meu lado está a preparar-se para estudar há mais de meia hora. Arruma os papéis, tira uma fotografia ao penso que tem na mão, troca mensagens com alguém, bebe água, reordena os papéis, desembrulha um rebuçado, levanta-se, sai da sala [respiro de alívio], e volta, volta a teclar no tablet, agora tecla no telemóvel, tira os auscultadores da mochila, escreve duas palavras, rói a unha, debruça-se sobre os papéis, volta a pegar no telemóvel e agora tecla no tablet, hamster frenético. Anseio por um dardo tranquilizador.

O rapaz à minha frente, pálido, esquálido e triste, tem colado no seu computador um autocolante de uma famosa marca de artigos de surf.

A moça com excesso de peso vai à varanda falar ao telemóvel. É muito bonita, ainda que se vista sem gosto. O seu grande azar em 2018 é ter a gordura mal distribuída. Se em vez de para as ancas e para as costas lhe tivesse fugido para o rabo, seria a-rainha-desta-merda-toda.


Depois de o rapaz que estava ao meu lado - tossiqueiro, abanão, distraído com vídeos de rap holandês - se ter ido embora, substitui-o um outro, vestido como os meninos bem de há vinte anos, sapato de vela sem meias, camisa azul, calças beges, cabelo curto, unhas cortadas de forma sensata. Tirando o seu perfume excessivamente intenso, excessivamente másculo, a presença é uma melhoria face à anterior porque se assoa discretamente em vez de fungar. Está, como outro na mesma sala, muito concentrado em slides sobre gestão de empresas. Tem os seus papéis organizados, três canetas idênticas (uma é lapiseira) sobre a mesa, desenha setas e chavetas com rigor. Parece-me o tipo de pessoa que se masturba com imensa força. Há-de chegar longe na tal empresa. Se disfarçar melhor do que agora o facto de ser gay. Abençoado seja. Que o seu caminho não seja pedregoso.

Pelo terceiro dia consecutivo, cruzo-me com um tipo de olhar amalucado - o leitor sabe, aqueles olhos muito arregalados e que nunca pestanejam - que me fita sem qualquer pudor, como se eu não pudesse vê-lo enquanto o faz, a verdadeira marca do maluco. Felizmente, a sala está cheia e tem de ser ir embora. Por instantes, passa-me pela ideia arregalar-lhe eu muito os olhos, só para o mandar calar. Seria um momento aterrador, e de que mais ninguém se aperceberia, o que só o tornaria mais aterrador. Mas o tipo ainda se apaixonaria por mim e a experiência já me disse que os malucos adoram atenção, tome ela que forma tomar.

Na fila para a casa-de-banho, a das senhoras fica livre. Um homem espera pela vez à minha frente e convido-o a usar o cubículo. Recusa com um riso muito nervoso, como se eu lhe tivesse oferecido um comprimido esquisito. Gostaria de lhe explicar que não acredito na segregação dos WC, que a sua vontade tem os mesmos direitos da minha, mas estou aflita e não tenho tempo a perder com quem já fugiu para dentro do seu telemóvel.

posted by pimpinelle