kitschnet - mini-pratos ao balcão: Filocidade


12.12.13

Filocidade

A minha professora de Filosofia do secundário inaugurou as aulas perguntando a cada um de nós qual era o sentido da vida. A minha resposta foi simples, imediata e espontânea: ser feliz. Apesar ou por causa? do que já sabia da vida e de filosofia, não havia outra resposta possível. (Outros houve que responderam «o nada» ou  «termos filhos».) Ordenou-me então que escrevesse um ensaio sobre os epicuristas (ateus), para explorar o tema da felicidade como fim último da existência, coisa que fiz.
Naquela altura, ainda tinha dúvidas sobre se cria num Deus; a ter de escolher, penderia para o sim. 
No outro dia, ocorreu-me que o meu último trabalho do curso já toda eu pendente para o ateísmo foi um textinho para Filosofia Medieval sobre o De beata uita (muito bonito, embora beato), que afirma, precisamente, que a finalidade da vida é a felicidade. O círculo completou-se.


Já não tenho o primeiro, mas tenho o último:





De Beata Uita

(Diálogo sobre a Felicidade)

de

Agostinho de Hipona




Não nos basta existir, queremos ser felizes. Quem o diz é Agostinho de Hipona (Tagaste, 13 de Novembro de 354 – Hipona, 28 de Agosto de 430) no início do seu primeiro diálogo após a conversão ao Cristianismo, De Beata Uita (386)[1]. É importante salientar as circunstâncias históricas em que o diálogo ocorre, pois é também desses acidentes que muito do interesse releva: a partir do contexto biográfico do seu protagonista podemos compreender melhor as mensagens contidas no texto. Sendo um dos seus primeiros diálogos – embora Agostinho perseguisse há muito explicações filosóficas para a ordem do mundo –, nele surgem algumas posições que mais tarde o autor sentirá necessidade de rever (nomeadamente nas Retractationes). Não obstante, este texto constitui um valioso testemunho do pensamento do filósofo e leva-nos a compreender de forma mais ampla o seu passado e a sua obra posterior.

A propósito do seu aniversário, Agostinho reúne alguns dos seus amigos, o seu filho e a sua mãe num local do seu agrado, Cassicíaco (perto de Milão), para onde se retirara a fim de meditar sobre as suas inquietações espirituais e intelectuais. O propósito deste encontro será «nutrir a alma» examinando um tema clássico: a vida feliz, sua natureza e modo de a alcançar. Conhecedor da herança helénica, e influenciado por ela, em que tal tema já havia sido debatido, Agostinho não quis deixar de retomar esta problemática e de tentar compreendê-la à luz do recém-descoberto Cristianismo. De facto, assistiremos neste colóquio aparentemente simples a uma interpretação verdadeiramente original, de matiz teocêntrica, que combinará de forma exímia os altos valores de um credo religioso – como a fé – e princípios orientadores da acção de cariz racional – como o livre arbítrio, que age com a razão –, aproximando ambas as esferas.

O título, De beata uita, «da vida feliz», apesar de poder ser traduzido para português como «da (ou sobre a) felicidade», realça a dimensão muito prática da felicidade, mais próxima da noção grega de eudaimonia, em que a felicidade não é um estado, ou sequer um fim a atingir, mas uma actividade, uma prática (no caso grego, da virtude), do que do seu conceito contemporâneo, tendencialmente identificado com a ideia de bem-estar. Vemos assim que, logo à partida, há uma intenção programática por detrás deste questionamento acerca da natureza da felicidade, pois ele visa sempre a introdução da questão sobre o modo como devemos viver de maneira a levarmos uma vida feliz. Contudo, apesar deste aspecto coincidente, o caminho da felicidade proposto por Agostinho é radicalmente diferente daquele enunciado pelos estóicos (marcado pelo vigor da alma), pelo epicurismo (marcado pela vontade do corpo) ou pela doutrina aristotélica (marcado pela força da virtude). Do ponto de vista agostiniano, ao contrário destas três perspectivas, a solução não reside apenas no homem: a felicidade é um dom divino.

Vejamos o que nos diz logo no início: «Se o método racional e a própria filosofia nos conduzissem ao porto da filosofia, a partir do qual já nos encaminhamos para a região sólida da felicidade, […] muito menos homens lá chegariam, ainda que […] sejam muito raros os que lá chegam.»[2] Nesta constatação inaugural, de feição retórica, Agostinho expressa já a sua convicção de que a razão e a vontade não são, por si só, suficientes para nos guiarem à felicidade. Mais adiante dir-nos-á, na sua eloquente metáfora marítima, que é necessário um farol que sirva de guia e que seja capaz de conduzir o homem, de outro modo errante, ao porto seguro da felicidade e que o afaste do pior e insidioso inimigo: a vanglória. Esta luz que ampara é a luz da razão, mas também a da fé.

Agostinho não hesita em socorrer-se do seu próprio percurso para ilustrar os vários caminhos passíveis de serem percorridos pelos homens e dá-nos conta da sua luta contra os académicos e da sua cegueira temporária face ao maniqueísmo. Aliás, um dos desígnios do diálogo é precisamente o refutar destas posições, como vemos bem patente no final do segundo capítulo, em que se conclui a impossibilidade de os Académicos serem felizes.

Entre as muitas ideias contidas no diálogo, a principal é a de que há que escolher entre uma vida entregue à busca do fugaz, que nos deixará necessariamente infelizes ou, a via preferível, uma vida dedicada ao que é eterno e imperecível. É a esta noção (reutilizada na sua teoria da vontade quando diz que é entre estas duas hipóteses que a vontade racionalmente decide[3]) de via para a felicidade que Agostinho quer chegar. Será através do reconhecimento do facto de que o fugaz jamais poderá satisfazer completamente que se opta por partir ao encontro da via que busca o eterno, que só pode ser em direcção a Deus. Ser feliz é, então, diz-nos no capítulo II (11), estar em Deus e possuí-lo.

Inicia-se no capítulo IV uma importante elaboração deste ponto de vista, que visa deslindar que coisa é possuir Deus. A troca de impressões e as consequentes deduções são o primeiro passo na identificação entre o nada, a ausência de posse, e a ignorância. Conclui-se dizendo que ser feliz é ser-se sábio, que por sua vez significa proceder com moderação, de acordo com a justa medida. A posterior identificação da sabedoria com a felicidade é de evidente influência (neo-)platónica, tal como a ideia de desapego às coisas materiais, que se sabem fugazes, é de matriz estóica .

Vemos então que Agostinho considera a sabedoria uma propedêutica indispensável para a felicidade (uma participação na sapiência) mas que só a plena entrega ao Deus cristão (a sapiência em substância e plenitude) conduz definitivamente a ela. É nesse sentido que vai a conclusão do diálogo quando se atribui à figura de Cristo a personificação da sabedoria divina e em que o filho de Deus dá o exemplo da justa medida. Visto desta maneira, enquanto exemplo, percebe-se a força da imagem de Cristo como um ideal para o homem (por um lado remetendo para o Pai, por outro lado assemelhando-se a um irmão).

Estamos perante uma teoria ética da felicidade, que não atribui ao homem mais leis do que aquelas que a sua razão e a sua fé já lhe impõem. Se o homem é visto como incompleto, paradoxalmente é-lhe mostrado que tem dentro de si as ferramentas para se aperfeiçoar, é-lhe prometido que, pela sua natural tendência intelectual e espiritual para a virtude (um Agostinho posterior confirmá-lo-á), será capaz de chegar ao porto, de alcançar a felicidade.

A novidade da concepção agostiniana de felicidade reside no facto de haver um reconhecimento da insuficiência humana de se auto-satisfazer. É muito marcante para os pensadores que se seguiram a Agostinho esta ideia de «incompletude», que não é, contudo, inteiramente negativa e que concorda com a observação inicial de Agostinho de que a soberba é um mal maior. Reconhecendo que não se basta a si mesmo, o homem projecta-se para fora de si em direcção à transcendência, libertando-se das suas imperfeições egoístas e ignorantes. Parece possível ler por detrás do véu retórico uma afirmação vincada da generosidade e da humildade, vias pelas quais o ser humano tem de passar, se quer lograr a verdadeira felicidade. É a constatação de que o homem só ilusoriamente subsiste por si só e, a par disso, uma desvalorização das coisas materiais (ideia antiga, reforçada pela doutrina cristã).

Não basta existir, precisamos de ser felizes e, para tal, de nos encontrarmos em Deus. De o integrar e de nos tornarmos inteiros. Esta intuição de Agostinho é comum a outras correntes de pensamento, como algumas do Oriente, muitas delas contemporâneas (mutatis mutandis), mas destaca-se principalmente como símbolo do começo da formação de uma filosofia cristã que se afirmaria a todo o Ocidente e cujos efeitos ainda hoje sentimos.







[1] Agostinho de Hipona, Diálogo sobre a Felicidade, ed. blilingue, trad. portuguesa, introdução e notas de Mário A. Santiago de Carvalho,  Lisboa, Edições 70, 2007.

[2] Idem, ibidem, Cap. I., 1.


[3] Agostinho, Diálogo Sobre o Livre Arbítrio, I., 7.


PS: palavras caras, quem as não tem?

posted by pimpinelle