No outro dia, ocorreu-me que o meu último trabalho do curso – já toda eu pendente para o ateísmo – foi um textinho para Filosofia Medieval sobre o De beata uita (muito bonito, embora beato), que afirma, precisamente, que a finalidade da vida é a felicidade. O círculo completou-se.
Já não tenho o primeiro, mas tenho o último:
De Beata Uita
(Diálogo sobre a Felicidade)
de
Agostinho de Hipona
Não nos basta
existir, queremos ser felizes. Quem o diz é Agostinho de Hipona (Tagaste, 13 de
Novembro de 354 – Hipona, 28 de Agosto de 430) no início do seu primeiro
diálogo após a conversão ao Cristianismo, De
Beata Uita (386). É importante salientar as
circunstâncias históricas em que o diálogo ocorre, pois é também desses
acidentes que muito do interesse releva: a partir do contexto biográfico do seu
protagonista podemos compreender melhor as mensagens contidas no texto. Sendo
um dos seus primeiros diálogos – embora Agostinho perseguisse há muito
explicações filosóficas para a ordem do mundo –, nele surgem algumas posições
que mais tarde o autor sentirá necessidade de rever (nomeadamente nas Retractationes). Não obstante, este
texto constitui um valioso testemunho do pensamento do filósofo e leva-nos a
compreender de forma mais ampla o seu passado e a sua obra posterior.
A propósito do
seu aniversário, Agostinho reúne alguns dos seus amigos, o seu filho e a sua
mãe num local do seu agrado, Cassicíaco (perto de Milão), para onde se retirara
a fim de meditar sobre as suas inquietações espirituais e intelectuais. O
propósito deste encontro será «nutrir a alma» examinando um tema clássico: a
vida feliz, sua natureza e modo de a alcançar. Conhecedor da herança helénica,
e influenciado por ela, em que tal tema já havia sido debatido, Agostinho não
quis deixar de retomar esta problemática e de tentar compreendê-la à luz do
recém-descoberto Cristianismo. De facto, assistiremos neste colóquio
aparentemente simples a uma interpretação verdadeiramente original, de matiz
teocêntrica, que combinará de forma exímia os altos valores de um credo
religioso – como a fé – e princípios orientadores da acção de cariz racional –
como o livre arbítrio, que age com a razão –,
aproximando ambas as esferas.
O título, De beata uita, «da vida feliz», apesar
de poder ser traduzido para português como «da (ou sobre a) felicidade», realça a dimensão muito prática da
felicidade, mais próxima da noção grega de eudaimonia,
em que a felicidade não é um estado, ou sequer um fim a atingir, mas uma
actividade, uma prática (no caso grego, da virtude), do que do seu conceito contemporâneo,
tendencialmente identificado com a ideia de bem-estar. Vemos assim que, logo à
partida, há uma intenção programática por detrás deste questionamento acerca da
natureza da felicidade, pois ele visa sempre a introdução da questão sobre o
modo como devemos viver de maneira a levarmos uma vida feliz. Contudo, apesar
deste aspecto coincidente, o caminho da felicidade proposto por Agostinho é
radicalmente diferente daquele enunciado pelos estóicos (marcado pelo vigor da
alma), pelo epicurismo (marcado pela vontade do corpo) ou pela doutrina
aristotélica (marcado pela força da virtude). Do ponto de vista agostiniano, ao
contrário destas três perspectivas, a solução não reside apenas no homem: a
felicidade é um dom divino.
Vejamos o que
nos diz logo no início: «Se o método racional e a própria filosofia nos
conduzissem ao porto da filosofia, a partir do qual já nos encaminhamos para a
região sólida da felicidade, […] muito menos homens lá chegariam, ainda que […]
sejam muito raros os que lá chegam.» Nesta constatação
inaugural, de feição retórica, Agostinho expressa já a sua convicção de que a
razão e a vontade não são, por si só, suficientes para nos guiarem à
felicidade. Mais adiante dir-nos-á, na sua eloquente metáfora marítima, que é
necessário um farol que sirva de guia e que seja capaz de conduzir o homem, de
outro modo errante, ao porto seguro da felicidade e que o afaste do pior e
insidioso inimigo: a vanglória. Esta luz que ampara é a luz da razão, mas
também a da fé.
Agostinho não
hesita em socorrer-se do seu próprio percurso para ilustrar os vários caminhos
passíveis de serem percorridos pelos homens e dá-nos conta da sua luta contra
os académicos e da sua cegueira temporária face ao maniqueísmo. Aliás, um dos
desígnios do diálogo é precisamente o refutar destas posições, como vemos bem
patente no final do segundo capítulo, em que se conclui a impossibilidade de os
Académicos serem felizes.
Entre as muitas
ideias contidas no diálogo, a principal é a de que há que escolher entre uma
vida entregue à busca do fugaz, que nos deixará necessariamente infelizes ou, a
via preferível, uma vida dedicada ao que é eterno e imperecível. É a esta noção
(reutilizada na sua teoria da vontade quando diz que é entre estas duas
hipóteses que a vontade racionalmente decide) de via para a felicidade
que Agostinho quer chegar. Será através do reconhecimento do facto de que o
fugaz jamais poderá satisfazer completamente que se opta por partir ao encontro
da via que busca o eterno, que só pode ser em direcção a Deus. Ser feliz é,
então, diz-nos no capítulo II (11), estar em Deus e possuí-lo.
Inicia-se no
capítulo IV uma importante elaboração deste ponto de vista, que visa deslindar
que coisa é possuir Deus. A troca de impressões e as consequentes deduções são
o primeiro passo na identificação entre o nada, a ausência de posse, e a
ignorância. Conclui-se dizendo que ser feliz é ser-se sábio, que por sua vez
significa proceder com moderação, de acordo com a justa medida. A posterior
identificação da sabedoria com a felicidade é de evidente influência
(neo-)platónica, tal como a ideia de desapego às coisas materiais, que se sabem
fugazes, é de matriz estóica .
Vemos então que
Agostinho considera a sabedoria uma propedêutica indispensável para a
felicidade (uma participação na sapiência) mas que só a plena entrega ao Deus
cristão (a sapiência em substância e plenitude) conduz definitivamente a ela. É
nesse sentido que vai a conclusão do diálogo quando se atribui à figura de Cristo
a personificação da sabedoria divina e em que o filho de Deus dá o exemplo da
justa medida. Visto desta maneira, enquanto exemplo, percebe-se a força da
imagem de Cristo como um ideal para o homem (por um lado remetendo para o Pai,
por outro lado assemelhando-se a um irmão).
Estamos perante
uma teoria ética da felicidade, que não atribui ao homem mais leis do que
aquelas que a sua razão e a sua fé já lhe impõem. Se o homem é visto como
incompleto, paradoxalmente é-lhe mostrado que tem dentro de si as ferramentas
para se aperfeiçoar, é-lhe prometido que, pela sua natural tendência
intelectual e espiritual para a virtude (um Agostinho posterior confirmá-lo-á),
será capaz de chegar ao porto, de alcançar a felicidade.
A novidade da
concepção agostiniana de felicidade reside no facto de haver um reconhecimento
da insuficiência humana de se auto-satisfazer. É muito marcante para os
pensadores que se seguiram a Agostinho esta ideia de «incompletude», que não é,
contudo, inteiramente negativa e que concorda com a observação inicial de
Agostinho de que a soberba é um mal maior. Reconhecendo que não se basta a si
mesmo, o homem projecta-se para fora de si em direcção à transcendência,
libertando-se das suas imperfeições egoístas e ignorantes. Parece possível ler
por detrás do véu retórico uma afirmação vincada da generosidade e da humildade,
vias pelas quais o ser humano tem de passar, se quer lograr a verdadeira
felicidade. É a constatação de que o homem só ilusoriamente subsiste por si só
e, a par disso, uma desvalorização das coisas materiais (ideia antiga,
reforçada pela doutrina cristã).
Não basta
existir, precisamos de ser felizes e, para tal, de nos encontrarmos em Deus. De
o integrar e de nos tornarmos inteiros. Esta intuição de Agostinho é comum a
outras correntes de pensamento, como algumas do Oriente, muitas delas
contemporâneas (mutatis mutandis),
mas destaca-se principalmente como símbolo do começo da formação de uma
filosofia cristã que se afirmaria a todo o Ocidente e cujos efeitos ainda hoje
sentimos.