Leio o texto de Hélia Correia que foi profusamente partilhado por muita gente das minhas relações sob o mote «um grande, grande texto». Gostar de como está escrito, identificar-me em parte com as ideias da autora, compreender o que ela diz e onde quer chegar não significa que concorde com tudo. Houve duas passagens em que embati, logo ao início:
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria.
Antes de mais, vivemos tempos duros mas não vivemos numa ditadura. Estamos longe do tempo em que comboios levavam milhares de pessoas para o Inferno, e não me parece que caminhemos nessa direcção. Por muito duro que o presente seja. Que é. Sei-o bem e jamais douraria a pílula.
Mas. Não podemos exigir que os Outros (sempre os outros, agora até nem humanos) nos dêem esperança, dignidade e alegria. Temos de ser nós a criá-la, a arrancá-la à terra e, sobretudo, de dentro de nós mesmos.
Nos discursos de indignação, com que estou solidária em parte, oiço sempre – e só – eles, eles roubam, eles matam, eles esfolam. Eles tudo e nós nada. Nós seríamos felizes não fosse por eles. Por acaso elegemo-los, mas foi por acaso, apenas por isso.
Eles são grandes e nós pequeninos e não há nada que possamos fazer a não ser chorar.
Eu acho que podemos crescer. Acho que os senhores maus não se vão embora sozinhos e acho que a pancada não é uma boa maneira de os tirar do lugar. Acho que temos de ser nós a encontrar maneira de – adultos, sem pedir desculpa nem pedir a chucha – ocuparmos os seus lugares.
Nem por um segundo abdiquei do sonho – e é por ele que vamos –, mas não me digam que são os outros que mo devem por inteiro, que têm de mo dar obrigatoriamente. Não darão, terei de ser eu a concretizá-lo. Nós. Connosco. Porque eles não são alienígenas, eles são nós.
Nas conversas nos transportes, no café, é sempre ela – a colega, a patroa – e sempre ele – o namorado, o fiscal da EMEL – que são odiosos. E dizem ele com nojo. E com maiúscula. Nós nunca, nós anjos. Só que nós eles. E eles nós. A irresponsabilidade dos governos começa na nossa própria desresponsabilização, perante os outros e, pior, perante nós mesmos.
É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
Só pode ser desumano quem é humano em primeiro lugar. A referida descontinuidade só é acentuada quando nos distanciamos. Esses outros que não morrem (!) nunca foram crianças? Não têm medo? Filhos a quem desejam o melhor? Esperança, ainda que nas coisas erradas? Podem ter mau carácter, ser criminosos, maus exemplos de se ser humano, e serem nesse aspecto um pouco diferentes de nós, mas nós somo-los em certa medida. Quão diferentes podem eles ser?