O senhor que
comigo espera pelo elevador tem o cabelo branco e usa-o para trás. Não é ainda
branco. Amarelado. Aquilo que noutra pessoa me causaria repulsa nesta
enternece. Consigo sentir um perfume antigo, de quem não se perfuma e apenas exala
dignidade, um olor a madeira maciça que o tempo impregna em vez de corroer. A
seu lado, o cabelo desalinhado, os braços gordos e as sandálias de borracha que
exibo não impõem qualquer respeito. O senhor sorri de boca fechada, cordial mas
sincero, enquanto esperamos, olhando discretamente para mim quando o elevador
chega. O que tinha vindo antes estava cheio – de pessoas que não se tinham
importado com a falta de oxigénio, com o contacto das peles húmidas do calor de
Agosto, com o homem que comia um gelado. Este elevador, agora, está vazio, mas
vejo que vai subir. O senhor convida-me a entrar primeiro – convite impresso em bom papel, simultaneamente suave e crespo ao toque, qual
tecido – e, como vejo que a seta no exterior indica que vai subir quando quero
descer, agradeço e lamento ter de recusar. Mas o senhor também vai descer e
insiste, como quem insiste em servir-me mais um pouco de chá, que eu suba a
bordo. Sorrio e entro, até porque as setas nos enganam. Estendo a mão para os
botões, primo o que diz um e o que ordena às portas que se fechem, o que estas
fazem, ainda que renitentemente. O senhor guarda um metro preciso de distância
de mim, o suficiente para não ser demasiado próximo, o suficiente para não
fingir que não estou ali. A ideal distância inter-humana.
Agora que já
não estamos paralelos e sim a noventa graus um do outro, posso observá-lo
melhor. Pasta de couro na mão e um jornal junto ao peito, camisa amarela clara,
de Verão, e um blazer azul-escuro. Não
olho para baixo, mas não é preciso. A pele dourada pelo sol e as entradas no
sítio certo remetem para anos passados noutros continentes. Talvez tenha andado
por Áfricas, pelas Índias. Terá partido para o Brasil em setenta e quatros? A delicada
mise-en-scène, de que certamente nem
se apercebe, sugere alta burguesia com tradição ou baixa aristocracia falida há
muito. A sua maleabilidade nega que tenha sido um homem do regime, mas deve ter
prosperado em novo. Arquitecto? Engenheiro? O nosso piso era o da livraria, o
que confirma a impressão de cultura.
O elevador sobe
mesmo. Surpreendido, fala comigo sem se voltar completamente, dizendo que ao
menos estamos cá dentro. Conversa de circunstância, mas muito amável. Nesta
altura, já o quero para avô. Duvido que me queira para neta, mas esse amor
filial não correspondido só aumenta por isso, o que em psicologia deve ter um
nome qualquer, certamente. Divãs à parte ou não, numa fracção de segundo
imagino-o a levar-me à praia, a querer saber das minhas notas, a ler jornais no
escritório fresco, cheio do cheiro a livros e madeira, o tal com que já trocou
tantas moléculas a ponto de se confundirem e transportarem mutuamente. Viveria
até tarde, deixar-me-ia a biblioteca depois de me deixar a mim, e só o faria
quando eu estivesse casada, já com um tronco sólido a meu lado, que me amparasse
aquando da sua queda. Teria muitas fotografias de nós juntos e saudades dos
gelados que nos levava a comer.
No piso de
cima, a porta abre-se e duas turistas orientais mostram-se confusas – não sabem
se desce ou se sobe. O senhor responde-lhes em inglês que vai descer. Só pode,
não há piso acima desse. A porta fecha-se. A porta volta a abrir-se. O senhor
volta-se para mim e confidencia «que confusão», ao que anuo com um sorriso. Descemos.
Como me perdi na imagem de nós na biblioteca, não ouço bem o que diz quando se revela
perplexo ao constatar que a porta se volta a abrir, desta feita num outro
andar, sem que seja o piso térreo, aquele onde ambos queremos sair. Percebo o
que aconteceu e digo-lhe que voltámos ao piso inicial, que só agora iremos
descer. Diz-me, apontado para os botões, que fomos nós que carregámos nos
botões. Ele não carregou em botão algum, eu também não e as turistas muito
menos. Aliás, e só depois reparo, parece que as duas se deixam ir à sorte para
qualquer piso que lhes calhe. Digo que talvez, para não o embaraçar. Talvez
porque intua o engano, corrige para: deve ter sido a memória, estas coisas às
vezes têm memória.
Memória. Este
caixão suspenso por cabos oleosos, comandado por um algoritmo misterioso, tem
memória. Se não tem memória, tem-nos a nós. E, portanto, a nossa memória. Ainda
que as minhas memórias sejam sobretudo as que não me pertencem. Como a deste
meu querido avô, que comandou expedições em África, fez fortuna no Brasil, teve
uma série de filhos, educados com mão firme e branda, amigos a sério, tempo
para ler, reflectir e recordar. Um elevador com memória. Isto fez-me lembrar o
espelho com personalidade que imaginara horas antes. (Numa loja de roupa
interior, atrás do espelho, está um segurança chamado Lígio ou coisa parecida.
Vê-me experimentar as coisas, a mim e a todas as que por lá passam. Assiste aos
desesperos dos tamanhos errados, os olhares furtivos para a cintura, as coxas, o
penteado que se compõe e a borbulha que se estuda. O pobre segurança não tem
outro remédio senão compadecer-se infinitamente das mulheres, de todas as
mulheres, e de as amar a todas à distância não sem uma certa tristeza, porque
do lado de lá do espelho vê-lhes, muito além das curvas – que se vão tornando um
pouco todas as mesmas curvas –, a angústia do lado de lá dos olhos.)
Chegados ao
último piso, deixamos sair as turistas e digo-lhe agora sim, a rua, apenas para
trocar uma última palavra e para lhe confirmar onde estamos. Sorri sereno, compreendendo
tudo.
Como saio à sua
frente, sou obrigada a mostrar-lhe o andar desajeitado, mais carne do que
queria, o saco que levo, as sandálias de borracha. Bastante mais à frente, ao
descer umas escadas, olhei para trás e lá estava ele, um mastro quinhentista, uma
coluna jónica. Por instantes pensei em ir ao seu encontro e perguntar-lhe se não
queria lanchar comigo. Jamais o faria, mas pensei nisso. Não era preciso
dizermos mais nada, bastava começarmos a conversar e recuperaríamos o tempo
perdido. Seria a melhor neta do mundo, eu.